Surpresa com a minha satisfação por uma conquista banal, insignificante aos olhos de muitos, minha amiga professora não se conteve: "Você tem uma indeclinável vocação para ser pobre". Mesmo concordando com ela, fiz cara de espanto para obrigá-la a explicar-se. Não se fez de rogada: "Pobre é que se alegra até com o nascimento do décimo terceiro filho quando mal consegue alimentar os doze que já tem". Aplicado a mim, o raciocínio não poderia ser mais adequado. Sou um homem que pesca alegrias em lagoa rasa, com anzol de linha curta. Não preciso ver um anjo com asas iridescentes, a exemplo do poeta William Blake, para me sentir feliz. Às vezes, a simples claridade da hora me basta.
Uma noite dessas, ao chegar a casa, me dei conta de que meu filho, inadvertidamente, levara a minha chave consigo, deixando-me “chiqueirado”, como se diz no sertão. Sem ter a quem recorrer, sentei-me na calçada, desacorçoado e triste como um cão sem dono. De repente, o céu avermelhou-se, prenúncio de chuva a caminho. E a chuva veio: mansa, “amorosa”, como naquele belo poema do Dobal. Foi o suficiente para despertar em mim o menino velho que, no sertão do Caracol, gastava parte dos dias campeando as nuvens magras que bordavam o azul do céu.
Buscávamos os sinais da chuva em toda parte: na agitação das formigas, na floração dos mandacarus, na posição do ninho do joão-bobo... Sem vacilar, meti-me na chuva, indiferente aos olhares indiscretos dos passantes. Banhei-me até esfriar o juízo. Eis que chega o meu filho e, assustado, tenta vãmente desculpar-se pelo “transtorno” que, involuntariamente, provocara. Limitei-me a agradecer-lhe a oportunidade que me propiciou de resgatar, ainda que por alguns minutos, a meninice extraviada.
De posse da chave, entrei na casa, enxuguei-me, bebi um gole de vinho, preparei um café forte, fiz um arremedo de beiju, requentei o resto da paçoca que sobrara do almoço e comi como um morador de rua que, numa noite de Natal, é agraciado com uma ceia oferecida por alguma alma generosa. Depois, armei uma rede velha, macia e acolhedora como colo de mãe, deitei-me e fui ler Quintana, meu poeta preferido. Posso até estar enganado, mas desconfio que, naquele momento, talvez não houvesse, no mundo, um homem mais feliz do que eu.
(Cacos de Mim)
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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