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Terça-feira, 25 de fevereiro de 2025
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cantidiosfilho@gmail.com

25/02/2025 - 09h01

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25/02/2025 - 09h01

Das Pequenas Alegrias

 

Sou um homem que pesca alegrias em lagoa rasa, com anzol de linha curta.

 Sou um homem que pesca alegrias em lagoa rasa, com anzol de linha curta.

Surpresa com a minha satisfação por uma conquista banal, insignificante aos olhos de muitos, minha amiga professora não se conteve: "Você tem uma indeclinável vocação para ser pobre". Mesmo concordando com ela, fiz cara de espanto para obrigá-la a explicar-se. Não se fez de rogada: "Pobre é que se alegra até com o nascimento do décimo terceiro filho quando mal consegue alimentar os doze que já tem". Aplicado a mim, o raciocínio não poderia ser mais adequado. Sou um homem que pesca alegrias em lagoa rasa, com anzol de linha curta. Não preciso ver um anjo com asas iridescentes, a exemplo do poeta William Blake, para me sentir feliz. Às vezes, a simples claridade da hora me basta.
 
Uma noite dessas, ao chegar a casa, me dei conta de que meu filho, inadvertidamente, levara a minha chave consigo, deixando-me “chiqueirado”, como se diz no sertão. Sem ter a quem recorrer, sentei-me na calçada, desacorçoado e triste como um cão sem dono. De repente, o céu avermelhou-se, prenúncio de chuva a caminho. E a chuva veio: mansa, “amorosa”, como naquele belo poema do Dobal. Foi o suficiente para despertar em mim o menino velho que, no sertão do Caracol, gastava parte dos dias campeando as nuvens magras que bordavam o azul do céu.
 
Buscávamos os sinais da chuva em toda parte: na agitação das formigas, na floração dos mandacarus, na posição do ninho do joão-bobo... Sem vacilar, meti-me na chuva, indiferente aos olhares indiscretos dos passantes. Banhei-me até esfriar o juízo. Eis que chega o meu filho e, assustado, tenta vãmente desculpar-se pelo “transtorno” que, involuntariamente, provocara. Limitei-me a agradecer-lhe a oportunidade que me propiciou de resgatar, ainda que por alguns minutos, a meninice extraviada.

De posse da chave, entrei na casa, enxuguei-me, bebi um gole de vinho, preparei um café forte, fiz um arremedo de beiju, requentei o resto da paçoca que sobrara do almoço e comi como um morador de rua que, numa noite de Natal, é agraciado com uma ceia oferecida por alguma alma generosa. Depois, armei uma rede velha, macia e acolhedora como colo de mãe, deitei-me e fui ler Quintana, meu poeta preferido. Posso até estar enganado, mas desconfio que, naquele momento, talvez não houvesse, no mundo, um homem mais feliz do que eu.

(Cacos de Mim)

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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais. 

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