Facebook
  RSS
  Whatsapp
Quinta-feira, 06 de março de 2025
Colunas /

Cultura

Cultura

cantidiosfilho@gmail.com

06/03/2025 - 07h34

Compartilhe

Cultura

cantidiosfilho@gmail.com

06/03/2025 - 07h34

Ecos da Quaresma

 

“A partir de amanhã, nada de baladeiras, arapucas, fojos e quixós. É  quaresma”.

 “A partir de amanhã, nada de baladeiras, arapucas, fojos e quixós. É  quaresma”.

Numa manhã qualquer (à época, todas me pareciam iguais), dona Purcina, a que só empregava os verbos no imperativo, decretou:  “A partir de amanhã, nada de baladeiras, bodoques, arapucas, fojos e quixós. É  quaresma”. Para mim, a palavra nova passou a ser sinônimo  de proibição. Com sua sentença irrecorrível, a matriarca nos privava  de uma prática prazerosa e comum entre os moleques do meu tope: passarinhar.
 
Como naquele soneto famoso do Camões, “os dias na esperança de um só dia...” e nada de a sentença ser revogada. Finalmente, alguém anunciou: “Estão chegando os dias grandes”.  E efetivamente chegaram: quinta e sexta-feira da paixão. As proibições ampliaram-se: nada de correrias, cantigas, barulho... Na sexta, não se podia comer carne, não se ordenhavam as vacas, não se tomava banho e os homens  não podiam fazer a barba. Havia também a obrigação do jejum, mas os meninos estavam dispensados. O irmão mais velho falou que iriam “romper aleluia” numa festa no Jatobá dos Ferros. Tudo aquilo fugia ao meu entendimento.
 
À noitinha, dona Purcina explicou: “Jesus Cristo está morto e pregado na cruz por causa dos nossos pecados”.  Como eu não conhecia nenhum Jesus e tampouco seria capaz de praticar algum pecado, continuei não entendendo nada. Uma pequena imagem de Bom Jesus, que vivia enclausurada num oratório, foi coberta com um  lenço roxo. Complicado, o mundo dos adultos.
 
Muito tempo depois, numa aula de catecismo, voltei a ouvir a mesma história sobre a paixão de Cristo. A freirinha, pálida como uma osga, explicou que por nossos pecados, “Cristo continua sofrendo todos os dias e padecendo, pregado na cruz”.  A partir daquele momento, comecei a sofrer por causa dos pecados que cometemos por meio de “palavras, pensamentos ações e omissões”. Fiquei sabendo também que já nascemos “marcados pelo pecado original”. Para mim, era bastante complicado entender como se pode responder por um pecado que não cometeu. Nascer, como se sabe, não depende da nossa vontade.
 
Anos mais tarde, numa aula de religião, no Ginásio Dom Inocêncio, cometi a imprudência de perguntar ao professor se o sacrifício de Jesus Cristo não teria sido inútil, já que os homens continuam cometendo pecados cada vez mais graves. Por muito pouco, não fui expulso do ginásio.
 
Um dia, já em Teresina, abro uma antologia poética e me deparo com o famoso soneto “Ignorabimus”, de Tobias Barreto. O soneto   termina assim: “se é sempre o mesmo engodo e falso enleio,/ se o homem chora e continua escravo,/ de que foi que Jesus salvar-nos veio?”. Respirei aliviado:  a dúvida não era só minha...

*****
Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais. 

Comentários