Houve um tempo, não muito distante, em que os mendigos, perdão, indivíduos em situação de mendicância, zanzavam pelas ruas pedindo “uma esmola pelo amor de Deus”. Quando recebiam alguma coisa, desmanchavam-se em agradecimentos: “Deus lhe pague”, “Deus lhe acrescente”, “Deus lhe dê saúde, fortuna e felicidade”. Em minha aldeia, no sertão do Piauí, conheci uma senhora que atendia pelo nome de Maria. Não era velha. Vestia-se decentemente e falava com delicadeza. Quando lhe davam alguma coisa, agradecia de maneira singular: “Jesus e Nossa Senhora que lhe abram as portas do céu e as janelas também; derramem chuvas de bênção, santa maravilha por riba do senhor e toda sua família, seja feliz aqui na terra e lá no céu no reino do paraíso”. Fazíamos fila para dar tostões a cidadã e ouvir a cantilena. Sabia pedir e especializou-se em bem agradecer.
Por que me lembrei disso? Porque nas ruas de Teresina, notadamente nos semáforos, há dilúvios de pedintes de todas as idades, desde senhoras com vestidos recobertos de babados, que se dizem venezuelanas, a jovens barbados, bastante sujos. Já não pedem esmolas; exibem pedaços de papelão com frases escritas em idioletos muito especiais nos quais não podem faltar as palavras FOME e FILHOS. Dia desses, parei para copiar esta joia: “Você tem pressa? Eu tenho fome!”. Não me lembro de ter visto nada tão exato e preciso. Um publicitário não faria melhor.
Mas estou viajando. O que me causa estranheza é ver nos pedaços de papelão algo insólito: o número do PIX do pedinte. Meu Deus, o capitalismo, com seu anzol irresistível, conseguiu fisgar até os que vivem da caridade alheia!
Confesso, um tantinho envergonhado, que nunca realizei nenhuma transação via PIX: nem saberia por onde começar. Também não sei usar o QR Code e outras “maravilhas tecnológicas”. Não sei usar nem mesmo um aplicativo para pedir um Uber. Estou à margem do deus-mercado, que rege nossas vidas.
Certa feita, perguntaram ao Paulinho da Viola se ele usava as redes sociais. Com a serenidade costumeira, o compositor respondeu: “Não. Eu sou um homem do século XIX”. Quanto a mim, velho e revelho, sou um remanescente da idade da pedra lascada.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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