Quem já leu Memórias póstumas de Brás Cubas, obra-prima de Machado de Assis, seguramente não estranhará o título insólito deste arremedo de crônica. Para quem ainda não leu, transcrevo aqui um fragmento do capítulo A borboleta Preta:
“No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona Eusébia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo logar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.
Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.
- Também por que diabo não era ela azul? disse eu comigo”.
O fragmento, como se sabe, enseja uma reflexão de Brás Cubas, personagem que diz muito do Brasil: orgulhava-se de nunca ter derramado uma gota de suor para ganhar o próprio sustento.
Por que estou tratando disso? Bem, ontem, enquanto eu me emocionava com a carta de Fernando Montenegro à filha Fernanda, vencedora do Globo de Ouro, uma borboleta negra adentrou o quarto e começou a voejar em torno da lâmpada. Perigosamente, aproximou-se do ventilador: temi o pior.
Levantei-me, desliguei a geringonça mortal e voltei à reportagem. A minha borboleta, ao contrário da de Brás Cubas, não era totalmente preta; tinha listras amarelas nas asas. Parecia desorientada pela luz do ambiente: borboleteava de maneira (como direi?) errática... Apaguei a luz, escancarei a janela na expectativa de que ela pudesse sair. Por um instante, perdi-a de vista. Acreditei que tivesse escapado. Mal acendi a lâmpada, ei-la que ressurge e pousa delicadamente no meu braço. Como não tenho vocação para Brás Cubas, com muito cuidado, abri a porta que dá para o quintal e propiciei-lhe a amplidão...
Quando a vi a caminho da liberdade, não pude deixar de pensar uma bobagem: se o Machado servisse apenas para salvar borboletas negras, já valeria a pena lê-lo.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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