Segundo Machado de Assis, o menino é o pai do homem. Falta-me autoridade para contestá-lo. Acredito, contudo, que, à medida que envelhecemos, vamos retocando a imagem do menino que um dia fomos: acrescendo detalhes, corrigindo falhas, preenchendo espaços vazios e, principalmente, adicionando cores...
No que me diz respeito, gosto de acreditar que fui um menino feliz, muito embora este adjetivo não figurasse no nosso magro universo vocabular. Campo Formoso onde nasci e passei a primeira infância era um convite a não ficar. Mas as aspirações eram rasas e o mínimo nos bastava. Na verdade, a única coisa de que efetivamente precisávamos era de chuva. E, quase sempre, chovia menos que o necessário. Gastávamos parte do tempo disponível campeando nuvens tresmalhadas na vastidão do azul. Não por acaso, tornei-me um velho encharcado de azulências, se me permitem o neologismo...
Como ninguém tinha brinquedos comprados, cada um inventava o seu. O meu preferido era prender vaga-lumes em vidrinhos de penicilina e pendurá-los em toda parte. Minha irmã mais amada preferia juntar casulos num cesto de cipó. Nas manhãs esplendentes, levava o cesto para o sol e ficava à espera do lento desabrochar das borboletas, um espetáculo de rara beleza.
Mas não se iludam: todos nós trabalhávamos. No sertão, as crianças trabalhavam regularmente. A mim, por exemplo, cabia as tarefas de levar o de-comer do meu pai, no roçado, e cuidar dos animais. Por volta das 8 horas da manhã, eu levava as cabras até o barreiro, pegava água numa cabaça e punha num cocho de madeira. Depois, era a vez de dessedentar os porcos e, ao meio-dia, os jegues. A água era pouca: não podíamos desperdiçar uma gota. Foi na escassez da caatinga que aprendi a entender a importância da água. Nos períodos de estiagens prolongadas, banho, só aos sábados. Rápidos banhos de cuia, um indescritível prazer...
O período das farinhadas, mês de junho e julho, era uma festa: as raspadeiras de mandioca traziam os filhos e as reinações se multiplicavam... tia Celina trazia a cambada de filhos. Entre eles, a Lina, bonita como a lua cheia num céu de setembro. Eu já tinha olhos adestrados para perceber o belo.
Um dia, dona Purcina – aquela dos verbos no imperativo – decidiu que me queria “doutor”. Sem me consultar, transplantou-me para a cidade onde aprendi a ser infeliz. Hoje, quando penso no “paraíso perdido”, recorro aos versos precisos de Paulo César Pinheiro: “Não fui feliz nem infeliz:/eu fui somente um aprendiz/daquilo que eu não quis”. Por que estou me lembrando disso agora? Desculpem o mau jeito: está chovendo no sertão ...
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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