É nos segundos finais de "Os Sonhos de Pepe", documentário que chegou aos cinemas na quinta, 05/12, que está o que é, para mim, a frase mais poderosa de todo o filme. E olha que ele é cheio de ideias e pensamentos inspiradores. Diz o Mujica: "Eu não traí o menino que mora dentro de mim".
Com 89 anos, o ex-presidente uruguaio resume deste jeito as escolhas que fez ao longo de toda a vida. Escolhas que o levaram à prisão e a tortura pelos militares por mais de 14 anos. E à presidência do Uruguai, décadas depois, por outros 5 anos.
Antes e depois destes dois momentos, nunca parou de contar ao mundo, com as suas atitudes no dia a dia, as coisas em que acredita: a gente se alimenta de afetos, não da posse de coisas. A gente existe para cultivar a nossa presença no mundo, não para acumular poder ao nosso redor e morrer sozinha. O tempo para escolhermos não morrer numa grande extinção em massa, consciente e evitável, está acabando. A gente precisa fazer as escolhas difíceis do nosso tempo.
Em quase uma hora e meia de filme, o diretor Pablo Trobo busca sintetizar a visão de mundo daquele talvez seja a última grande utopia política de esquerda, especialmente entre as juventudes. Mas não só. Faz isso contando a passagem de Pepe pela presidência da república, entre 2010 e 2015, esparramando por suas viagens internacionais as ideias, crenças e os pensamentos que o ajudaram a ficar conhecido como "o presidente mais pobre do mundo".
Título que, inclusive, ele não suporta, por dois motivos: diz que é sóbrio, e isso é diferente. Vive com o necessário, tem tudo que precisa para manobrar a vida. Sem excessos. E também: acha engraçado que o admirem tanto por aí, mas não o imitem com tanta rapidez. Especialmente os políticos. Passou pelo cargo recusando as mordomias do poder, sem ficar longe da vida das pessoas pelas quais trabalhava, morando na mesma casa de sempre. Renunciando a tudo que o deixasse de alguma maneira superior, distante. Desconectado do mundo real, onde a vida grita o que precisa de verdade.
Em uma das cenas que arrancou risadas do público que assistia à pré-estreia em São Paulo, Pepe responde a uma pergunta da imprensa japonesa sobre o também ex-presidente Barack Obama, dos Estados Unidos: "Suas ideias são mais interessantes que o seu governo". Em vários momentos do filme, Mujica repete que é preciso acabar com a distância entre o que se diz e o que se faz. Especialmente se você é um presidente da república.
"Os Sonhos de Pepe" é um sopro em tempos em que o ódio engaja tanto. O lugar de alguma esperança fica sendo o das pessoas românticas demais. E aí fica parecendo que elas sonham demais, que tem ideias demais, mas que não sabem transformar em ação. O filme mostra que isso não é uma verdade. Muitas vezes, tudo pode ser resumido a isso: ao chegar aonde se chegou, não traia a criança que mora dentro de você.
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Tony Marlon é educador e comunicador popular, atua como facilitador e designer de estratégias em comunicação. Publicado no Uol em 06.12.24
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