Depois de muito pesquisar, o capitalismo finalmente encontrou o anzol que nos fisgaria impiedosamente: a Internet. A isca não poderia ser mais atraente: o espelho. Finalmente a nossa vocação narsísica pôde ser exercida em toda a sua plenitude.
 
Mas por que estou falando disso?  Sei lá.  Vejam que sacada esperta: como se não bastassem os dias consagrados às mães, aos pais, às crianças, aos namorados, a Internet resolveu “ressignificar” os dias. Agora, todo dia é dia de alguém ou de alguma coisa: do amigo, do abraço, do beijo, dos dentes branqueados, das mãos limpas... Só não se inventou ainda o dia dos corruptos porque eles não se contentam com apenas um; querem todos.  
Mas deixemos de chove não molha. Nessa sexta (27/09) é o Dia Universal da Doação de Órgãos. Nada mais justo.
 
Para o meu gosto, não existe gesto mais belo, mais humano, mais generoso que doar órgãos. É como se, mesmo depois de mortos, estivéssemos ajudando alguém a viver...Então, que todos os dias sejam dia de doação. Hoje, me dei conta de que nunca declarei publicamente o meu desejo de doar o que, porventura, exista em minha carcaça que ainda tenha alguma serventia. Fui listando órgão por órgão e o resultado: desanimador. De qualquer forma, posso testificar que tenho ótimos pulmões. Como não fumo, estão limpos e funcionando regularmente. Os rins, a despeito de uma próstata voluntariosa, funcionam bem. O velho coração tem resistido bravamente aos embates dos amores achados e perdidos... 
 
Gostaria de colocar à disposição de quem, porventura, venha necessitar o meu senso de humor. Um humor rascante, às vezes, meio ácido, que tem me ajudado a suportar perdas e danos. O diabo é que não consegui localizar exatamente onde fica o órgão responsável por produzi-lo. Há quem afirme que é o fígado; outros, o hipocampo. Não falta quem ateste que são as amídalas...
 
O mais não tem a menor serventia. Minto. Tem, sim: as cinzas. Já que pretendo ser cremado, as cinzas poderão servir de adubo para alguns ipês da Chapada. Está tudo testamentado. Assim seja.

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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.