A enxurrada de memes com sátiras ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a pressão do mercado para o corte de gastos públicos mostram que o governo não terá vida fácil para aprovar a segunda etapa da reforma tributária — aquela que vai alterar a forma como são cobrados os impostos sobre a renda dos brasileiros.
Como estamos cansados de saber, nosso sistema é altamente regressivo, ou seja, cobra proporcionalmente mais dos pobres e menos dos ricos. Por isso, é urgente fortalecer a mordida do Leão sobre os ganhos e sobre o patrimônio do topo da pirâmide.
Mas a chacota do "Taxadd" e o coro cada vez mais alto por uma nova reforma da Previdência são um aperitivo da oposição ferrenha a ser enfrentada por qualquer projeto calcado no conceito de "justiça tributária".
"O que o governo precisa fazer é reduzir os gastos, e não aumentar impostos num país em que carga tributária já é altíssima", escutamos o tempo todo.
Aliás, é o que ouviremos com ainda mais frequência daqui para frente, quando o Congresso Nacional concluir a reforma tributária sobre o consumo, atualmente em tramitação no Senado, e passar à segunda fase.
Ainda que não seja surpresa, alguns dados importantes para qualificar o debate vêm sendo propositalmente esquecidos no debate rasteiro das redes…
A carga tributária teve queda em 2023, em relação ao ano anterior: foi de 33,1% para 32,4% do PIB (Produto Interno Bruto). Por sinal, o último salto significativo aconteceu durante o governo Fernando Henrique Cardoso, quando ela pulou de 26% para 32% do PIB, entre os anos de 1995 e 2002.
Uns pagam mais do que deveriam e outros menos do que precisariam
O leitor pode fazer duas observações bastante pertinentes.
Primeira: a carga tributária brasileira continua elevada para os padrões de países emergentes. Segunda: os cidadãos têm mais do que razão ao se queixarem da baixa qualidade dos serviços públicos bancados com essa arrecadação.
Sim, é verdade. Mas o xis da questão, como bem pontuou o pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Manoel Pires, em entrevista a esta coluna, é que no Brasil a carga é extremamente desigual: uns pagam mais do que deveriam e outros menos do que precisariam. Às vezes, muito menos.
Mesmo entre a chamada classe média isso acontece. Um profissional liberal com carteira assinada sofre descontos de até 40% em sua remuneração, enquanto um 'pejotizado' com a mesma função paga menos de 10%.
Lembrando que, não raro, o pejotizado deveria ser formalmente registrado, por ser empregado de fato, mas é obrigado a virar pessoa jurídica para ser contratado, numa clara fraude trabalhista que amplia o déficit do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
Mas algumas distorções, como a isenção de lucros e dividendos para sócios de empresa, geram situações que seriam cômicas, se não fossem absolutamente trágicas.
É o caso do cidadão contribuinte com renda total de R$ 1,4 bilhão que anos atrás declarou o equivalente a R$ 1,3 bilhão em rendimentos totalmente livres de impostos, segundo dados oficiais da Receita Federal compilados também por Manoel Pires e outros dois colegas, em artigo publicado na Folha de S. Paulo.
Justiça tributária não é sinônimo de descontrole de gastos
Dizer que o andar de cima precisa aumentar sua parcela de contribuição não é assinar um cheque em branco para o governo gastar adoidado. Pelo contrário.
A Previdência, sempre lembrada como a grande vilã do orçamento público, é certamente o maior dos desafios. De fato, o aumento dos custos será um desafio permanente, com o envelhecimento da nossa população.
Nesse sentido, é necessário corrigir erros, alguns deles cometidos pelas próprias gestões petistas. A malfadada política de desoneração da folha salarial, a criação de regras insustentáveis para o regime dos MEIs (Microempreendedores Individuais) e a falta de vontade para reformar a Previdência dos militares são alguns bons exemplos.
Há outras agendas importantes para trazer algum alívio ao caixa do Estado, caso da reforma administrativa. Mas essa precisa ser focada no corte de privilégios da elite do funcionalismo, como a cúpula do judiciário, sem prejudicar a massa de servidores com rendimentos muito inferiores.
Entre todos os exemplos mencionados acima para tentar arrumar as contas públicas, não há uma briga fácil de se comprar. Não à toa, uma das propostas mais ventiladas nos últimos tempos tem sido o velho sonho do ex-ministro da Fazenda de Bolsonaro, Paulo Guedes: desvincular os benefícios do INSS do salário mínimo.
Em outras palavras, na nossa balança política, soa bem mais factível sacrificar dois terços dos 40 milhões de beneficiários que todo mês pagam as contas com o piso do INSS (a incrível fortuna mensal de R$ 1.412!) do que fazer a nata do país contribuir com mais impostos.
Este é um bom resumo do Brasil: tem gente que se choca mais com o benefício do aposentado arrimo de família do que com o R$ 1,3 bilhão isento de tributos e declarado por um único contribuinte. Prioridades.
*****
Carlos Juliano Barros é jornalista e mestre em Geografia pela USP. Artigo reproduzido do Uol, publicado em 23.07.2024.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião desta página, se achar algo que viole os termos de uso, denuncie.