1970. Depois de cincos anos de agruras e provações de todo tipo, as coisas pareciam entrar nos eixos. Passei no vestibular para o curso de Direito, “um passaporte para o sucesso”, afirmava-se. Não bastasse a vitória no vestibular, pela vez primeira, em cinco anos, eu tinha uma namorada apresentável. Tudo estaria bem não fossem dois problemas: eu continuava desempregado e tinha uma carta de despejo no bolso. Não sendo mais estudante secundarista, eu tinha 30 dias para deixar a espelunca onde morava, o CCEP.
Confesso que bateu uma profunda tristeza: nada mais humilhante do que voltar para minha aldeia como um fracassado. Ao me ver tão desacorçoado, um dos náufragos – o Otacílio - me perguntou: “Por que você não vai lecionar?”. A pergunta pareceu-me uma provocação. Em momento algum, passou-me pela cabeça a possibilidade de me tornar professor. Não bastasse a falta de vocação, eu não tinha a qualificação mínima necessária. O Otacílio insistiu: “Você não nos ensina aqui? Então, pode ensinar em qualquer lugar”. Eu estava tão confuso que não disse nada. À tarde, ele me arrastou para falar com o professor Francisco Figueiredo, que era dono de um curso preparatório para o Madureza, o Instituto Elias Torres. O cidadão era também diretor do Colégio Helvídio Nunes. Meu colega de infortúnio apresentou-me como “um bom professor de português”. O diretor limitou-se a dizer: “Passe à noite lá no Colégio Joel Mendes”, onde funcionava o Instituto. Acovardado, não troquei duas palavras com o homem.
No início da noite (dia 09 de abril de 1970), com uma gramática massuda debaixo do braço, apresentei-me ao proprietário do curso, que se limitou a dizer: “Me acompanhe”. Acreditei que iríamos à diretoria da escola. De repente, ele abriu uma sala, com uns 50 alunos, entrou e declarou: “Boa noite, pessoal. Eis o novo professor de português. Boa sorte”. Fechou a porta e saiu. A coisa foi tão inesperada que meu cérebro não teve tempo de enviar uma mensagem mandando as minhas pernas fugirem. Respirei fundo, oxigenei o juízo e pensei: vou falar sem parar a fim de que não me perguntem nada. Por oportuno, vale lembrar que, durante uns dois anos, trabalhei como camelô nas feiras de São Raimundo Nonato. Excelente aprendizado. Durante 50 minutos (os mais longos da minha vida) falei sem parar. Finda a aula, saí como um desvairado a caminho de casa... Nunca me senti tão triste e envergonhado. Prometi a mim mesmo nunca mais entrar numa sala de aula para enganar a ninguém.
No dia seguinte, por volta das dez horas, o telefone do CCEP tocou. Era o Figueiredo. Queria falar com o “professor” Cineas Santos. Contrafeito, resolvi atender. Sem me dizer bom dia, declarou: “Parabéns, professor, os alunos adoraram a sua aula!”. Tive de me sentar para não cair. Ele continuou: “Está contratado. Você tem aula amanhã às 19 horas”. Sem dizer até logo, desligou. Com o juízo fervendo, o coração aos pulos e a carta de despejo à vista, pensei: ou o negócio está tão ruim que até aprendiz de camelô pode dar aulas, ou sou muito bom e ainda não descobri. Para sobreviver, fiquei com a segunda opção. Aprendi que a necessidade faz a “vocação”. Estou professor até hoje. Sem queixas nem mágoas, repito G. Rosa: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. Sigo aprendendo...
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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