Em meados da década de 1980, eu e um punhado de fazedores de cultura criamos o Projeto Mão Dupla, uma ideia simples e factível. Nos finais de semana, visitávamos um município do interior do Piauí para ensinar, aprender, interagir...Uma experiência enriquecedora. A partir do final da década de 1990, o projeto foi rebatizado com o nome de A Cara Alegre do Piauí. Aos trancos e barrancos, permanece vivo.
Um dos primeiros municípios que visitamos foi Oeiras, uma festa. Na noite de encerramento do evento, eu deveria proferir uma palestra sobre cultura popular. Os universitários do município cuidaram de tudo: local amplo, som adequado, plateia generosa, um dilúvio de gente...Entre os presentes, estavam o vice-prefeito da cidade, o sacerdote, o mestre Possidônio Queiroz, o “oráculo” da aldeia. Tudo planejado para funcionar bem. Aí o imprevisível entrou em cena.
À tarde, antes do evento, o escritor Rogério Newton convidou-me para visitar dona Eulália, viúva do velho brincante Manoel Antônio. Proseamos um pouco, tomamos café, fizemos um punhado de fotos. Aproveitamos a oportunidade para visitar também o Mestre Quelé, o cidadão que organizava as “Leseiras” na cidade. Quando perguntado se ainda realizava a brincadeira, respondeu: “Não porque o tenente, chefe da polícia, me cobra uma licença de trezentos contos e eu não tenho esse dinheiro. Eu não cobro nada para fazer a brincadeira. Não tenho de onde tirar o dinheiro”. Perguntei-lhe se podia gravar a fala dele. Autorizado, gravei tudo.
No meio da palestra, citei a conversa com o Mestre Quelé. Mal terminei a frase, o tenente, que estava na primeira fila, levantou-se, avançou em minha direção e, dedo em riste, berrou: “Você está mentindo! Não cobro nada de ninguém, sou honesto e muito bem-quisto”. Recorri ao cabedal de macheza que havia em mim e retruquei: o senhor já cometeu três erros. O primeiro, tratar-me por você. O segundo, apontar o dedo para a minha cara. O terceiro, chamar-me de mentiroso. Vamos ver quem está mentindo. Liguei o gravador e a plateia pôde ouvir as queixas de seu Quelé. Impossível conter a vaias! O clima ficou tenso.
Serenados os ânimos, terminei minha peroração e preparei-me para pegar a estrada. Cordato, o tal tenente aproximou-se, pediu desculpas, lamentou o incidente e me convidou para tomar um uísque num dos clubes da cidade.
Como não gosto nem de uísque nem de polícia, declinei da honraria. Voltei para minha Chapada de onde só pretendo ausentar-me quando a “indesejada das gentes” me conduzir ao reino do nada. Assim seja!
*****
Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião desta página, se achar algo que viole os termos de uso, denuncie.