Fosse uma história infantil, poderíamos iniciá-la assim: era uma vez um menino negro e pobre que, mesmo sem existência civil, tinha o passaporte para o coração do mundo: a poesia. Como a história é verídica, que fale o poeta: “Até os dezesseis anos de idade, eu praticamente nem tinha existência civil, já que não tinha nem sequer uma certidão de nascimento. A minha desimportância era tamanha que só a poesia poderia me resgatar do nada. Então, ela foi-se achegando a mim e eu a ela, numa simbiose tão profundo que, contrariando a lei da Física, passamos a ocupar, ao mesmo tempo, o mesmo espaço”. Vista pelo prisma da poesia, a trajetória de Salgado Maranhão pode parecer simples e até glamourosa. Eu lhes asseguro que não foi. Nascido no interior do Maranhão (Canabrava das Moças), filho de agricultores pobres, Salgado passou a infância “correndo atrás do sol/pés descalços pelos matagais/ por entre cascavéis e beija-flores”. Aos 16 anos de idade, semianalfabeto, veio para Teresina onde, em pouco mais de três anos, cursou, via supletivo, o primeiro e o segundo graus. Como já trazia a poesia, em estado bruto, no embornal do peito, começou a escrever e a publicar poemas nos jornais da cidade. Mas, entre um poema e outro, era preciso ganhar o sagrado feijão de cada dia... Ásperos tempos.
Em 1973, com a cara e a coragem, mudou-se para o Rio de Janeiro “para construir uma carreira literária”. O Cristo Redentor, apenas ele, o recebeu de braços abertos... Salgado Maranhão já sabia que não seria fácil, mas com aquele atrevimento dos que nada têm a perder, agarrou-se à poesia e foi em frente. Tantas fez que, em 1978, publicou, pela Civilização Brasileira, Ebulição da Escrivatura, uma antologia de poemas dele e de outros náufragos como ele. O Brasil começava a descobrir o poeta de Canabrava das Moças.
O mais é do conhecimento de todos: com “ardente paciência”, tendo apenas a poesia como chave e passaporte, Salgado Maranhão foi se tornando uma voz reconhecível. E vieram mais livros, aplausos, prêmios, traduções em vários idiomas, do inglês ao hebraico. Poeta full time, Salgado trabalha como alguém que bem aprendeu a lição de Drummond: “Lutar com palavras é a luta mais vã”. A despeito disso, luta.
Menino, em sua aldeia, apreciava o ofício dos cantadores e repentistas com suas violas enfeitadas de fitas. A plateia aplaudia e fazia festa. Mas os mais velhos advertiam: “Viola e poesia não dão camisa a ninguém”. O que não poderiam imaginar é que, quando crescesse, aquele garoto de sorriso fácil não se contentaria apenas com camisa; quer fardão...
Para nós, que acompanhamos a trajetória do filho de dona Raimunda, nenhuma surpresa: poeta apolíneo, Salgado Maranhão sabe, desde sempre, que ainda há muitos azuis a avançar. Sabe também que é da natureza das borboletas e dos poetas buscarem sempre o infinito. Assim seja.
(O Poeta aniversariou nessa segunda-feira, 13 de novembro).
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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