Não tenho fé lúdica. Não sou apostador de nenhuma das possibilidades infinitas de se fazer apostas hoje em dia, não tenho o hábito da “fezinha” cultural de muitos brasileiros, no afã do enriquecimento instantâneo.
Quando morava em São Paulo, nos lugares em que trabalhei (Itaú Cultural, Tribunal de Justiça, algumas faculdades) sempre havia os tais “bolões” de aposta, e eu, meio constrangido, entrava naquilo, sob um tipo de ameaça plena de certeza divina: “é bom participar, pois vamos ganhar e vc continuará pobre.” Espero, de verdade, que alguns desses antigos colegas estejam ricos nesse momento.
Minha resistência não se afigura em altruísmo de efeito, nada contra os jogos de azar (a nomenclatura é muito adequada, não dá pra chamar de ‘jogos da sorte’), até me entretenho com jogos de tabuleiro, baralho, xadrez, dama, dominó em rodas de afeto. Nada além disso. ah, já ganhei uma rifa…
A bem da verdade, devo ter em algum ponto recôndito de meu inconsciente uma pulsão traumática, pelo fato de meu pai ter sido chegado a jogatina (deve ter ganho algum prêmio pequeno, mas nunca enriqueceu). Curiosamente, foi com essa memória de meu pai, apostador contumaz e nosso professor de baralho e dominó, que esbarrei, em minha adolescência, com o romance “O jogador”. Eu nem sabia direito quem era Dostoiévski, mas o drama daquele protagonista às voltas com o jogo na cidade de Roletemburgo me marcou. Só depois fui saber tratar-se do alter ego do autor.
O que me faz pensar sobre isso hoje, é que noto nas manchetes, portais, entrevistas de telejornais com anônimos sobre os prêmios lotéricos da semana (“acumulou a Mega-Sena”), o destaque enfático em relação ao que fazer com o prêmio abespinhado. Invariavelmente fala-se em o que daria pra comprar com tal montante: tantas Ferraris, tantos BMWs, quantas mansões iguais a de fulano, quanto renderia em aplicações financeiras, no mercado de ações etc.
Não se fala, nem se compara à possibilidade de algum empreendedorismo, numa indústria qualquer, em quantos hospitais poderiam ser construídos, quantas escolas, sei lá, o novo milionário continuaria rico, ou até aumentaria sua riqueza, e daria algum retorno social.
Sim, podem me dizer: cada um faz o que quer com seu dinheiro, em nossas planilhas de capital liberal do eucentrismo existencial.
Bem, como falei no início, não sou devoto da fé lúdica, contudo, ainda tenho fé na humanidade.
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Feliciano Bezerra é professor doutor da UESPI - nas redes sociais.
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