É certo que nunca a vi lendo um livro, mas sei que sabia ler. Sabia de cor alguns folhetos de cordel que cantava com voz afinada e ritmo adequado. Uma noite, enquanto debulhávamos feijão na calçada da casa velha, cantou a história de uma onça que, num período de seca braba, comeu a bezerra de um capitão feroz. A história começava assim: “No tempo da seca grande/por me ver na precisão/fui matar uma bezerrinha/na fazenda de um capitão”. O mais curioso é que a onça, depois de morta, conta a história. Surrealismo em estado puro. Ouvi a narrativa e, comovido, comecei a chorar. Tia Odete quis saber por que eu estava chorando. Inventei uma desculpa qualquer, mas acrescentei: quando crescer, quero fazer isso. Ele me disse: “Então trate de aprender a ler”. No dia seguinte, desencavei uma velha Carta de ABC e pedi a dona Purcina que me ensinasse as primeiras letras. Em curto espaço de tempo, eu já estava gaguejando algumas palavras. Uma vez desasnado, passei a devorar folhetos de cordel como um alucinado. Li muitos, decorei alguns. Apreendi o ritmo e a musicalidade dos heptassílabos.
Muito tempo depois, fiquei sabendo que João Cabral de Melo Neto descobriu a literatura lendo folhetos de cordel para os trabalhadores da fazenda dos avós. No poema “Descoberta da Literatura”, afirma: “No dia a dia do engenho, /toda semana, durante,/cochichavam-me em segredo:/saiu um novo romance./E na feira do domingo/ me traziam conspirantes/para que eu lesse e explicasse/ um romance de barbante”. João Cabral tornou-se um dos maiores poeta da literatura brasileira; quanto a mim, jamais passei de um camelô da boa literatura produzida pelos outros. Ler é bem melhor que escrever, acreditem.
Na semana passada, depois da palestra que proferi no Salão do Livro de Bom Jesus, respondendo à pergunta de uma professora, falei da aventura de ter aprendido a ler graças à influência da minha tia sertaneja. O que eu não poderia imaginar é que, naquele exato momento, tia Odete acabava de sair de cena, lá no sertão da Jurema. Tinha pouco mais de 80 anos, continuava lúcida, pitando seu cigarrinho de fumo, à sombra de um juazeiro frondoso. Creio que morreu fumando.
Quando vejo a propaganda: “Leia para uma criança: isto muda o mundo”, não posso deixar de me lembrar da tia amada que me mostrou o portal da poesia. A partir do dia em que aprendi a “juntar as letras” para formar palavras, passei a ler poesia como quem reza. Um dia, quando a “indesejada das gentes” vier me sequestrar, alguém certamente dirá: “Calou-se o velho falastrão que amava as chuvas, as mulheres, a poesia e os ipês”. Como se pode ver, vivo em boa companhia...
(Crônica publicada em 2016)
*****
Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião desta página, se achar algo que viole os termos de uso, denuncie.