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Sabado, 28 de dezembro de 2024
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Cultura

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cantidiosfilho@gmail.com

31/10/2023 - 08h52

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31/10/2023 - 08h52

A TIA QUE SABIA LER

 

 

É certo que nunca a vi  lendo um livro, mas sei que sabia ler. Sabia de cor alguns folhetos de cordel que cantava com voz afinada e ritmo adequado. Uma noite, enquanto debulhávamos feijão na calçada da casa velha, cantou a história de uma onça que, num período de seca braba, comeu a bezerra de um capitão feroz. A história começava assim: “No tempo da seca grande/por me ver na precisão/fui matar uma bezerrinha/na fazenda de um capitão”. O mais curioso é que a onça, depois de morta, conta a história. Surrealismo em estado puro. Ouvi a narrativa  e, comovido, comecei a chorar. Tia Odete quis saber  por que eu estava chorando. Inventei uma desculpa qualquer, mas acrescentei: quando crescer, quero fazer isso. Ele me disse: “Então trate de aprender a ler”. No dia seguinte, desencavei uma velha Carta de ABC e pedi a dona Purcina que me ensinasse as primeiras letras. Em curto espaço de tempo, eu  já estava gaguejando algumas palavras. Uma vez desasnado, passei a devorar folhetos de cordel como um alucinado. Li muitos, decorei alguns. Apreendi o ritmo e a musicalidade dos heptassílabos.
 
Muito tempo depois, fiquei sabendo que João Cabral de Melo Neto descobriu a literatura lendo folhetos de cordel para os trabalhadores da fazenda dos avós. No poema “Descoberta da Literatura”, afirma: “No dia a dia do engenho, /toda semana, durante,/cochichavam-me em segredo:/saiu um novo romance./E na feira do domingo/ me traziam conspirantes/para que eu lesse e explicasse/ um romance de barbante”. João Cabral tornou-se um dos maiores poeta da literatura brasileira; quanto a mim, jamais passei de um camelô da boa literatura produzida pelos outros. Ler é bem melhor que escrever, acreditem.
 
Na semana passada, depois da palestra que proferi no Salão do Livro de Bom Jesus, respondendo à pergunta de uma professora, falei da aventura de ter aprendido a ler graças à influência da minha tia sertaneja. O que eu não poderia imaginar é que, naquele exato momento, tia Odete acabava de sair de cena, lá no sertão da Jurema. Tinha pouco mais de 80 anos, continuava lúcida, pitando seu cigarrinho de fumo, à sombra de um juazeiro frondoso. Creio que morreu fumando.
 
Quando vejo a propaganda: “Leia para uma criança: isto  muda o mundo”, não posso deixar de me lembrar da tia amada que me  mostrou o portal da poesia.  A partir do dia em que aprendi a “juntar as letras” para formar palavras, passei a ler poesia como quem reza. Um dia, quando a “indesejada das gentes” vier me sequestrar, alguém certamente dirá: “Calou-se o velho falastrão que amava as chuvas, as mulheres, a poesia e os ipês”. Como se pode ver, vivo em boa companhia...

(Crônica publicada em 2016)

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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais. 

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