Ainda Gato
Diariamente, nos finais de tarde, faço pequenas caminhadas nas proximidades do Setor de Esporte da UFPI onde se pretende instalar um parque ambiental. A área é grande, relativamente bem preservada, com uma fauna (aves, répteis e pequenos mamíferos) bem variada. Armado com uma velha Nikon, faço meus passeios fotografando os bichinhos, um bom pretexto para caminhar.
Desde sempre, avisto um gato malhado, solitário, arredio, transitando por lá. Como não tenho comércio com felinos, não lhe faço festinhas. Orgulhoso, o bichano finge ignorar-me. Inamistosos, cada um segue o seu rumo. Às vezes, eu o encontro dormindo sossegadamente à sombra de um ipê; outras vezes o vejo atento, aceso, à caça de pequenos semoventes distraídos... Invariavelmente, lembro-me dos versos “Nós, gatos, já nascemos pobres/ Porém, já nascemos livres”, da canção “História de uma gata”, do musical Os Saltimbancos.
Um dia, um dos passantes teve a (in)feliz ideia de levar-lhe um pouco de comida num pratinho de plástico. Pronto: com seu gesto generoso, transformou o gato solitário e livre numa espécie de mendigo profissional. Mal enxerga alguém, desce da mureta onde descansa preguiçosamente e se enrosca nas pernas do transeunte, miando desesperadamente... A cena se repete, mesmo quando há comida na vasilha.
Foi aí que me lembrei de um cidadão que entende de gatos e assemelhados. Segundo a sabedoria dele, “Os gatos são os animais mais independentes que existem: não precisam de donos. Os ‘donos’ é que precisam deles”. Falta-me autoridade para contestá-lo. Como gosto mesmo é de poesia, fico com os versos de Demétrio Galvão: “O ronronado / é uma língua secreta/ que os gatos usam para domesticar seus os donos”.
Minha irmã, que caminha comigo e gosta de bichanos, afeiçoou-se ao gato mendigo: diariamente, leva-lhe um tico de ração. Tornaram-se “amigos de infância”. Dia desses, esqueceu-se de levar a comida do velhaco. Ele miou, protestou, fez seu teatrinho e desapareceu. Quando voltamos, no pingar da noite, lá estava ele, na calçada, devorando uma pequena serpente... A irmã amada ficou visivelmente chocada. Quanto a mim, feliz: o gato vadio, mordido pela fome, acabava de recobrar a dignidade perdida. Voltara a ser simplesmente gato.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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