O ano era 2000, se não me trai a memória. Eu zanzava por Fortaleza quando fui convidado a conhecer o velho Patativa em Assaré. O poeta já estava com 91 anos de idade e bastante debilitado. Praticamente cego e meio surdo, já não saía de sua aldeia. Quanto à viagem, léguas tiranas: uns 500 km sertão adentro...
Viajei em boa companhia: um pesquisador cearense, compadre do Patativa. Chegamos a Assaré por volta do meio-dia. O velho bardo nos recebeu com a hospitalidade dos sertanejos. Fui apresentado ao vate como um “poeta do Piauí”. Ele fingiu não ter ouvido. De repente, perguntou: “O senhor já visitou o Memorial do Patativa do Assaré?” Diante da resposta negativa, recomendou: “Vá conhecer, é uma beleza. Eu sou apenas um lavrador de poucas letras, mas o Patativa é um gênio da natureza”. A exemplo do Pelé, falava de si mesmo na terceira pessoa.
O Memorial é realmente impressionante, todo informatizado, com imagens e objetos do velho poeta. Numa vitrine especial, a primeira viola do cantador. Comemos alguma coisa numa birosca e voltamos à casa do bardo para nos despedir. Patativa estava no seu “trono”, uma cadeira de vime, com o número 88 nas laterais, presente do governador Tasso Jereissati quando o poeta completou 88 anos de idade. Dono de uma memória prodigiosa, Patativa, fumando cigarro Gaivota e cuspindo, recitou um dilúvio de versos, dele e de outros parceiros. Entre eles, Domingos Fonseca e Manuel Xudu, poetas que admirava.
Na hora da despedida, lançou a provocação: “Me disseram que o senhor é um poeta do Piauí. Faça um verso para eu ver”. Desconversei, falei que era brincadeira do amigo. O velho insistiu: “Quero ver se o senhor verseja bem”. Puxei pela cachola e sapequei: Patativa, eu lhe pergunto/ Me responda se souber/Existirá neste mundo/Bicho melhor que muié/Se existir com certeza/E no sertão de Assaré.
O velho não esperava por isso. Pigarreou, pediu para eu repetir, “que num assuntei direito”. Repeti a sextilha e ele, de bate-pronto, respondeu: “Se eu disser que existe/Talvez esteja enganado/A muié é a ventura/Mas é também o pecado/ Só não gosta de muié/ Quem é baitola ou capado”.
Levantou-se e, com o dedo em riste, ordenou: “Não vá publicar isso, entendeu?”. Limitei a dizer: sim, senhor.
Dois anos depois (junho de 2002), Patativa do Assaré encantou-se. Foi a única vez na vida em que vi um gênio.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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