Os meninos da minha aldeia tínhamos um sonho em comum: ir para São Paulo, ganhar dinheiro graúdo e voltar para a terrinha com uma sanfona Scandalli, de preferência, vermelha. Por respeito à verdade, não era o amor à música o que nos movia; eram as mulheres. A sanfona era, no nosso entender, o melhor passaporte para chegar ao coração das mulheres...
Assim, os tios, os primos, o irmão mais velho, todos foram. Eu, ansiosamente, aguardava a minha vez. Enquanto sonhava com uma sanfona de verdade (a minha seria azul), eu me contentava com as sanfoninhas feitas com folhas de carnaúba. A caminho do açude, eu ia solfejando canções populares e imaginando as mulheres que colheria (o verbo é outro) quando me tornasse um sanfoneiro de verdade.
Uma manhã, sem aviso prévio, o irmão regressou de São Paulo com uma reluzente sanfona vermelha. Tocava mal, muito mal; ainda assim, impressionava as mocinhas desavisadas. Cantava uns baiões manjados e, para os padrões da época, fazia sucesso. Decidi que o melhor a fazer era ganhar tempo: aprenderia a tocar na sanfona do irmão antes de comprar a minha. Não foi uma boa ideia: depois de maltratar o instrumento por umas duas semanas, o máximo que consegui foi avariar uma das teclas. O irmão foi taxativo: “Nem olhe mais para minha sanfona”. Dona Purcina completou a sentença: “Um filho tocador já chega. Quero você doutor”. Não havia como contra-argumentar: a velha matriarca só usava os verbos no imperativo.
Assim, enquanto meu irmão flauteava com a sanfona a tiracolo, eu tentava vãmente descobrir as diferenças entre vocativo e aposto. Mas o sonho permanecia latente. Uma noite, ouvi no rádio de um vizinho o Sivuca tocando um frevo. Aquilo me deixou, a um tempo, extasiado e frustrado. Como sou virginiano, concluí que tocar daquele jeito eu não conseguiria e menos que aquilo não me satisfaria. Sepultei de vez o sonho de me tornar sanfoneiro. Infelizmente, também não cumpri as expectativas de dona Purcina: não me tornei doutor.
Resta-me o consolo de poder ouvir os grandes sanfoneiros e, naturalmente, pensar nas mulheres que deixei de colher... Não se pode ter tudo.Paciência.
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E viva a procissão das sanfonas!
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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