Seu olhar era perquiridor, atento a tudo, pronto a pareceres sobre qualquer coisa, qualquer assunto, tudo lhe interessava. Talvez por isso tornou-se competente jornalista, capaz de atuar em quaisquer das editorias; fosse jornalismo cultural, política, esporte, cotidiano, cidades... tinha o que dizer, no rádio e na tv; e o que escrever, no impresso. Com boa percepção dos fatos, resolvia bem o discurso, em sínteses provocativas e funcionais, aliando seriedade e bom humor pontuais. Não se acomodava, estava sempre às voltas com algum projeto, alguma nova atuação jornalística ou cultural.
Francisco Magalhães era ousado, objetivo e inteligente. Ocupava os espaços, parecia conhecer pessoas de todos os estamentos sociais de Teresina, pois circulava com desenvoltura e fazia questão de identificar os indivíduos. Foi assim comigo, aproximou-se, quis me conhecer, e lá se foram décadas de amizade. Gentil, mas não do tipo subserviente, valorizava os encontros, gostava muito de falar, metia-se, confiava em seu aporte de informações e rapidez de cruzamentos; ainda que derrapasse, algumas vezes, para ouvintes desavisados, compensava pelo histrionismo empático.
Isso de ser muito sabedor, me agradava. Leitor voraz, tinha ambições para além do jornalismo, investia pesado em literatura, queria também ser reconhecido como poeta, produzia versos prolificamente, porém, sensato, tinha consciência de que a poesia não abraça a todos. A solução foi tornar-se cancionista, entregar seus versos a parceiros de harmonias e melodias; encontrou então seu campo de atuação poética, através da canção esboçou sem lirismo solto e variável. Provocava todo o pessoal de música, até com certa insistência, pois era um ser de resultados, queria ver acontecer. Comigo não foi diferente, enviava-me letras com frequência, desafiando-me a pôr melodia em suas palavras, ou então, humildemente, pedindo sugestões para soluções melopaicas.
Conhecia bastante música popular brasileira, ficávamos horas conversando sobre historiografias, sobre os compositores, os intérpretes, os movimentos, as canções, os gêneros. Encontrou no samba sua linguagem musical mais frequente, e com o compositor Osnir Veríssimo, seu parceiro mais destacado, encetou muitos sambas, inclusive sambas de enredo para as já saudosas escolas de samba piauienses.
Outro investimento lírico sério do Magalhães foi a prática do haikai, essa estrutura poética de tradição japonesa. Dedicou-se com disciplina para alcançar razoáveis soluções nessa vertente. E, como tudo que fazia vinha com volúpia, escreveu centenas deles, enviou-me dezenas, para supostas avaliações (desconfio que ignorava minhas observações e reparos...), e tinha um projeto de edição em livro destes haikais. E, pelo que li, merece editoração.
Tivemos uma parceria no jornalismo cultural. No final dos anos de 1980, o jornalista Kenard Kruel, outro amigo que recentemente passou a figurar em meu álbum de memórias, era o editor-chefe do extinto Jornal da Manhã. O periódico emanou-se em verdadeira farra do jornalismo cultural em Teresina, com muitos dos envolvidos com arte e cultura escrevendo, desenhando, polemizando, provocando; uma rara trincheira cultural com espaço para quem quisesse expressar ideias. Durvalino Couto, Cineas Santos, Aci Campelo Campelo, Chico Castro, Albert Piauhy, Paulo Moura, Antonio Amaral e muita gente boa vibrou ali. A convite do kenard, e do então editorialista e poeta Chico Castro eu escrevia lá, esporadicamente, artigos soltos. O Magalhães era um dos colaboradores do jornal, e teve a ideia de montar uma coluna cultural. Convidou-me, e já veio com a ideia pronta, a coluna se chamaria Grafito e teríamos ele, eu e o músico e compositor Geraldo Brito como escrevinhadores. Assim foi feito, a coluna era assinada por nós três, em três dias da semana, sem identificação de quem escrevia em qual dia. Mas, a simpática estratégia da morte do autor, logo se revelou, pois os leitores começaram a identificar quem escrevia em qual dia, por conta da distinção estilística. Foi uma experiência de relativo sucesso em Teresina, e o Magalhães era o mais entusiasmado, provocando pautas para mim e o Geraldo Brito. Muitos anos depois, até recentemente, ele ainda aventava um projeto de publicar os textos da coluna Grafito em livro. Eu ouvia a proposta, com respeito, mas nunca me empolguei, muitos dos textos ali são datados, outros teríamos que fazer sérias revisões, enfim, livro é outra coisa...
Era assim o Magalhães, um entusiasta das coisas relevantes, um provocador de sensibilidades. Era culto, porém, sem paciência para erudição, não se afeiçoava com a reflexão no sentido hermenêutico, era mais do corrimão especulativo/informativo. Até me provocava, com ironia fina e salpicada de doce veneno, quanto a minha condição de professor universitário.
Francisco Magalhães foi um amigo com potência de vergalhões. A prosa interlocutória finda-se, a risada comum finda-se, o afeto repousará no quadro da memória. Morrer é triste.
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Feliciano Bezerra é músico, professor doutor da UESPI - nas redes sociais.
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