Em Campo Formoso, entre os meses de maio e agosto, fazia frio, frio de congelar os tutanos. A friagem seria suportável, tivéssemos agasalhos minimamente decentes. Não tínhamos. Dormíamos em redinhas puídas, enovelados como aquele cão do soneto do Quintana.
Numa manhã qualquer – à época, todas me pareciam iguais – acordei ferroado pelo frio. Para piorar a situação, eu fizera xixi na rede. Meio atordoado, atravessei a casa, ainda mergulhada na penumbra, e dirigi-me à casa de farinhada, onde normalmente havia o calor do forno. De repente, deparei-me com uma figura estranha: um pigmeu caboclo, acocorado diante de uma fogueirinha feita com sabugos de milho. Baixinho, barrigudinho, barba rala e pálpebras roídas pelo tracoma. Era o Bertim, um dos loucos que gravitavam em torno de dona Purcina. Ele também tinha feito xixi no couro de boi no qual dormia. Ao me ver, levantou-se, estendeu os braços e falou gaguejante: “Vem quentar fogo, meu santo, vem!”. Um gesto de puro acolhimento.
Creio ter sido o Bertim a primeira pessoa de quem efetivamente me lembro com detalhes. Tornou-se meu amigo. Numa noite de São João, pediu-me para ser meu padrinho de fogueira. Aceitei de pronto, o que me rendeu pilhérias de todo tipo.
Um dia, como sói acontecer com qualquer doido que se preze, o Bertim desapareceu sem deixar vestígios. Guardei-o na memória e no coração. Com ele aprendi uma cantiga que começava assim: Andando na rua/ avistei na janela/ corpinho tão lindo,/ carinha tão bela...
(fragmento do livro O aldeão lírico)
*****
Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião desta página, se achar algo que viole os termos de uso, denuncie.