No Ginásio Dom Inocêncio, tive um colega relapso, encrenqueiro e cheio de novidades. Foi ele quem me falou pela primeira vez de um grupo de rapazes ingleses que estava revolucionando a música e os costumes na Europa. Eram os Beatles. Como aquilo estava do outro lado do mundo, não dei maior importância ao fato.
Um dia, ele chegou ao colégio com um disco do Roberto Carlos com o título de “Jovem guarda”. Uma das faixas era impactante para quem estudava num colégio religioso: “Quero que vá tudo pro inferno" . Embora o contar tivesse uma voz pequena para os padrões da época, gostei da música. Mas, como em minha casa não havia rádio, eu me limitava a ouvir os boleros que minha irmã amada cantava enquanto cuidava dos afazeres domésticos.
No ano seguinte, eu já estava em Teresina vegetando entre os náufragos que se acoitavam na UPES (União Piauiense dos Estudantes Secundaristas). Ali na Rua Des. Freitas. Um deles tinha um violão velho que ganhara numa rifa. Só conhecia dois acordes, o que era suficiente para tocar as baladas da turma do iê-iê-iê: Wanderley Cardoso, Jerry Adriano, Eduardo Araújo e, naturalmente, Roberto Carlos. Como não havia muita coisa a fazer, para enganar a penúria, cantávamos. E tome Leno e Lilian, Deny e Dino, Renato e Seus Blue Caps e caterva. Um dos náufragos gostava tanto de Ronnie Von que, ao ouvi-lo, desandava a chorar. Era acintosamente feio e foi agraciado com o apelido de “Ronnie Von”.
No início de 1968, a casa velha caiu uma parte. Fomos transferidos, às pressas, para um casarão estranho, no final da Rua Simplício Mendes, na Baixa do Chicão. À época, já éramos uns 80. A casa velha não tinha banheiros para atender a tanta gente. Vivíamos, literalmente, atolados num mar de merda. Ásperos tempos.
Confesso que, às vezes, batia o maior desespero. Uma incontida vontade de voltar para minha aldeia de onde eu nunca deveria ter saído. Mas aí me vinha à mente a sentença de dona Purcina: “Não me apareça aqui antes de virar dotô”. Fui ficando. Mordido pela pobreza, eu trabalhava num fábrica de sandálias de borracha e, à noite, estudava no Liceu. O salário mal me garantia o almoço.
Foi aí que o “rei” entrou definitivamente em minha vida. Roberto Carlos lançou “O inimitável”. De cara, apaixonei-me pelas baladas “E não vou mais deixar você tão só” e “As canções que você fez pra mim. Nas proximidades da casa velha onde morávamos, havia um barzinho seboso. À noite, ao chegar do colégio, eu comprava um pingado (café com leite), uma fatia de bolo e pedia as canções do Roberto. Era, como diria G. Rosa, “um descanso na loucura”.
No momento em que se comemoram os 82 anos de Roberto Carlos, não posso deixar de agradecer-lhe. Seguramente, aquelas canções açucaradas, que tantas vezes ouvi, impediram-me de pular no precipício... Longa vida ao Rei!
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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