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Domingo, 29 de dezembro de 2024
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Cultura

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cantidiosfilho@gmail.com

22/03/2023 - 07h56

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cantidiosfilho@gmail.com

22/03/2023 - 07h56

APRENDIZ DE VOYEUR

 

 

O ensaio se iniciava às dezenove horas. Sempre tagarelando, rindo cantando, as meninas começavam a chegar por volta das dezoito. O espetáculo era bem simples: poucas falas, número de danças e pitadinhas leves de humor. No elenco, as moças mais bonitas da cidade: Lola, Hildene, Djusa, Marluce... Como de costume, lá estava eu na primeira fila do teatrinho do Ginásio Dom Inocêncio. Todos os dias, a mesma coisa. Uma noite, percebi que no piso do palco de madeira, havia frinchas, frestas...Imaginei que o ensaio poderia ser bem mais (como direi?) instigante se visto de baixo para cima. No dia seguinte, cheguei mais cedo e, como um gato sorrateiro, aboletei-me debaixo do palco. Operação complicada: o palco era muito baixo e havia poeira, cheiro de urina de rato, teia de aranha e morcegos, muitos morcegos. Mas o que não se faz por amor à arte?
            
As frinchas eram estreitas, a iluminação do palco precária, mas, com os olhos em brasa e o coração aos pulos, eu assistia a tudo muito aceso... Vai que uma noite, um infeliz me viu mergulhando na penumbra sob o palco e resolveu entrar também. Mal se iniciou a música, os morcegos assustados começaram a voejar. O desgraçado, medroso como uma galinha, deu um berro e saiu correndo. Não tive tempo de correr também. As moças me conheciam: eu era o filho da “Tia”, a doceira. Num átimo, selaram o meu destino: dona Purcina precisava ser informada para que me aplicasse os corretivos cabíveis. Assustado, desarvorado, desandei a chorar... Nisso, a Marluce, uma loura risonha e despachada, interveio em meu favor: “Que bobagem é essa, gente? Deixa o menino ir se exercitando para virar homem de verdade”. E soltou uma gargalhada de assustar os morcegos que, porventura, ainda estivessem por lá.
            
Morto de vergonha e medo, perdi o tesão pelo ensaio e nunca mais apareci no teatrinho. Não tive oportunidade de agradecer à Marluce aquele ato de piedade cristã, digamos assim. Quem conheceu dona Purcina sabe do que me livrei... (fragmento de O aldeão lírico).

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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais. 

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