Não sou muito de ‘maratonar’ no consumo de filmes e séries, como por exemplo, minha filha adolescente, que faz isso com naturalidade; deve ser a diferença em relação ao uso do tempo entre gerações, não sei. Mas, ontem assisti a dois filmes seguidos, “A baleia”, que vi no cinema, e ao chegar em casa vi “Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo”, ambos na lista do Oscar 2023. No meio da semana já havia assistido ao “Triângulo da tristeza”, também oscarizado. Os três impressionam, cada um em suas intenções estéticas e de consumo, suas leituras contemporâneas do mundo, suas seduções imagéticas e narrativas.
“A Baleia” é aquele tipo de filme para comoção fácil, para adesão lacrimejante. A atuação do ator Brendan Fraser é realmente grandiosa (sem trocadilho). O drama de um professor de redação, Charlie, que sofre de obesidade mórbida e está prestes a morrer por conta das comorbidades resultantes, contracena com as angústias dos outros personagens, sua filha adolescente rancorosa e em transe, sua ex-mulher alcóolatra, a enfermeira mais que amiga e um jovem confuso com sua crença religiosa, personagem estranho, que entra em contraponto narrativo.
Tudo se passa no apartamento de Charles, que não consegue sair de casa para nada, suas aulas são remotas e tudo lhe é trazido de fora. A tensão narrativa do filme é concentrada, não há locações externas, os dramas de Charlie são de sua memória amorosa pela morte de seu companheiro e de quem entra pela porta. Solução dramatúrgica que deve ter vindo da peça teatral que originou o roteiro do filme.
A curiosa referência a Moby Dick, de Herman Melville, no título, não está necessariamente ligada ao fato de Charlie ser obeso, ainda que esteja, mas sim a um pequeno texto sobre a obra que emociona o protagonista, e quando lido ou lembrado ameniza seu infortúnio, só descobrimos ao final tratar-se de uma redação de sua filha quando criança.
O filme também é sobre a possibilidade da escrita literária, da imaginação, da tentativa de inscrever uma verdade, como a breve discussão em torno do texto bíblico e da poética gay de Walt Whitman, e o limite do imaginário diante do que é posto como real.
“Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo” é uma película frenética, com riqueza pluridimensional em sua narrativa, verdadeiro ensaio cinematográfico, resultando numa espécie de metafilme. há passagens de citações a outras experiências cinematográficas, os gêneros são requisitados e estão lá, o suspense, a comédia, o romance, a ficção, o barateamento da violência, peripécias de lutas marciais, efeitos alucinantes, cortes metafísicos e surreais e por aí vai. Fico imaginando a trabalheira que foi fazer sua montagem, pois são superposições narratológicas.
O tempo narrativo é sincrônico, e o uso de narrador intradiegético incrementa a ficção, eleva o ponto de vista a dimensões abertas com o qual se permite especular até o metaverso, a interdimensão, com idas e vindas de placas temporais que explicam o título do filme.
A partir de um núcleo familiar de imigrantes chineses, que tocam uma lavanderia, a complexidade dramática toma corpo, que vai desde os pequenos conflitos linguísticos entre os idiomas inglês e chinês, passando pelas inconveniências da burocracia estatal de fiscalização financeira até os dramas mais iracundos das relações amorosas. Tudo numa velocidade lisérgica.
As atuações são magistrais. A asiática Michelle Yeoh possui experiência e empatia performática impressionantes, e olha que a personagem exige desdobramentos de ações incríveis. A veterana Jamie Lee Curtis, que vive a auditora fiscal Deirdre, emula com Michelle a força interpretativa, e o atrapalhado personagem Waymond Wang, vivido pelo vietnamita Ke Huy Quan completa a tríade tensa, surpreendente e hilária.
“Triângulo da tristeza”, do diretor Ruben Östlund, é alegoria cômica das assimetrias sociais contemporâneas, cada vez mais intensificadas na superposição hierárquica de valores, em que o acúmulo infindável de capital de uma elite implica na castração existencial de demais humanos.
O microcosmo do navio, onde a trama se adensa, serve como síntese tópica do que é o mundo do consumo e do que lhe soçobra em retenção de sentido, a partir do domínio da ostentação em si e do seu vazio moral. Os personagens ricos são perfilados numa espécie de bestiário de privilégios, culminando no mal-estar geral pela comilança requintada da cozinha do navio, e então o indiscreto charme do estômago entra em ação e a escatologia toma conta com vômitos e diarreias compulsivas.
A solução histriônica é corrosiva e faz a delícia do filme. O empresário de fertilizante, que se diz “empresário da merda”, faz um contrapelo ao comandante bêbado marxista-bukoviskiano do navio, o casal de idosos que enriqueceu vendendo granadas, e que ironicamente recebe dos piratas do mar uma granada que explode e naufraga o navio, a influencer e seu namorado subserviente e meio inútil, que, numa sacada jocosa do roteirista, aparece tomando sol no navio com um exemplar de Ulisses, de James Joyce (!), ao fútil não é possível o complexo. Quando vi esta cena, lembrei de uma clássica foto de Marilyn Monroe, sensualizando num parque, lendo Ulisses... não sei se se trata de citação.
A sequência narrativa, pós naufrágio do navio, se dá numa ilha, com alguns dos sobreviventes tendo que se remanejar de seus valores, e aí toda hipocrisia será castigada, com a personagem Dolle De Leon, líder da equipe de limpeza do navio, tornando-se a provedora de tudo na ilha, subalternizando os demais, e até conquistando o namorado inútil da influencer.
Cinema é degustação de linguagens, o cardápio é imenso, as escolhas e preferências atendem a critérios os mais variados, multiformais e multissensoriais. A indústria faz sua festa nesse domingo, com a premiação do Oscar 2023, mobiliza toda sua pesada cadeia e provoca nos incautos a vontade de saber como tudo acontece, como se dá esse envolvimento na possibilidade de assimilação e entendimento de um tipo de prazer, de um tipo de arte.
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Feliciano Bezerra é professor doutor da Uespi - nas redes sociais.
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