Em meio às asperezas da cidade hostil, uma gota de alegria: a música. Em Campo Formoso, não havia música, a não ser a do vento. Num raio de doze quilômetros, não havia um sanfoneiro, um violeiro, um rabequeiro, nada. Ainda assim, cantávamos fragmentos de cantigas que, desfiguradas e estropiadas, passavam de boca a boca...
No Ginásio Dom Inocêncio, havia uma velha amplificadora que, no final do dia, derramava música sacra no ar, tornando as tardes mais tristes... Mas havia os sanfoneiros, alguns muito bons: Egídio Raposo, Borrego, Joãozinho do Cecé, entre outros. O Hamilton Barreto extraía melodias belíssimas de um velho sax azul... Os Negros da Vanja tocavam alguns instrumentos de sopro, uma festa. Havia também os seresteiros, cantores de boleros: Adi Castro, João Bebinha, Lourinho...
Uma noite, minha irmã amada levou-me para assistir a uma “ hora de arte” no teatrinho do Ginásio. De repente, aparece no palco um rapaz magro, elegante, misto de Clark Gable e Zé Bonitinho. Era o Adi Castro. Com voz potente, afinada, dispara:” Reloj no marques las horas/porque voy a enloquecer/Ella se irá pra siempre/quando amanezca outra vez...” Tiro certeiro no meu coração, ainda virgem de emoções fortes... Repetindo Bandeira, foi o meu primeiro alumbramento. A canção de Roberto Cantoral encharcou, para sempre, a minha alma de bolero. Minha irmã percebeu-me os olhos marejados, mas aceitou minha explicação (mentirosa) de que fora apenas um cisco...
Algum tempo depois, apareceu um circo na cidade. Na verdade, um arremedo de circo, com um palhaço excelente e um belo cantor de boleros. O moço, um tipo aciganado, com a cabeleira encharcada de brilhantina, cantava apenas três canções, uma delas marcante: “Quero beijar tuas mãos, minha querida...”. Decidi que, quando crescesse, abandonaria a chatice da escola e ganharia o mundo cantando boleros e, naturalmente, colhendo mulheres...
O tempo encarregou-se de me cortar as asas. Além da voz de galo com gogo, eu não tinha o perfil de cantor de boleros: faltavam-me beleza, elegância, classe... Quem foi que disse que a vida é justa?
(O aldeão lírico)
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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