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contato@acessepiaui.com.br

22/04/2020 - 18h04

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22/04/2020 - 18h04

A Filosofia nos ajuda refletir sobre a crise da Covid-19; por Igor Fortes

A quarentena nos fornece uma oportunidade para fazermos uma investigação filosófica sobre nossas vidas.

 Unisinos

 

A quarentena por causa da pandemia do novo coronavírus tem levado as pessoas a buscarem formas de lidar com esta situação singular. Isso levou alguns filósofos italianos a criarem o projeto Prendiamola com Filosofia: stafetta di filosofi – strumenti pratici per affrontare la quarentena, que conta com duas lives realizadas (a primeira em 21/03/2020 e a segunda em 04/04/2020) e cujo objetivo é fornecer instrumentos práticos, oriundos da Filosofia, para enfrentar a quarentena. Iniciativa que precisa receber atenção, especialmente, em tempos nos quais se usa a pandemia para tentar sufocar a Filosofia.

Quando se trata de recorrer à história da Filosofia para buscar algum filósofo ou escola filosófica que nos ajude a lidarmos com esta situação gerada pela pandemia talvez a escola estoica seja a que venha de imediato à mente. De forma bastante resumida, o estoicismo é uma escola helênica cuja noção de felicidade consiste num estado de tranquilidade da alma, isto é, ausência de perturbação1; os estoicos partiam de uma importante visão da natureza: nós, humanos, não temos controle sobre a natureza, isto é, não controlamos tudo o que acontece no mundo ou em nossas vidas. Precisamos reconhecer esta nossa limitação e deixarmos nossa felicidade apenas para aquelas coisas sobre as quais temos controle, porque assim a nossa felicidade dependeria apenas de nós mesmos e não de coisas que não podemos controlar; disso advém a figura estoica do sábio enquanto aquela pessoa que reconhece sua própria impotência e conduz sua vida em conformidade com os acontecimentos, ou seja, ao invés de tentar se opor aos eventos cósmicos, o sábio se adequa a eles e a partir de então conduziria a sua vida2.

O estoicismo ensina a lidar com as circunstâncias com tranquilidade, de modo que o reconhecimento da limitação de nosso poder de ação não deve nos perturbar. No contexto de isolamento social, a determinação do isolamento é feita pelos governos, isto é, escapa ao controle dos indivíduos; o que nos cabe é reconhecermos que não podemos decidir no lugar do governante e nos adequarmos, sem angústias, à nova situação de quarentena. Contudo, nós somos livres para decidirmos o que iremos fazer com o tempo disponível. Assim, mesmo que nem todos possam escolher o isolamento, cabe a nós decidirmos se passaremos os dias espionando as redes sociais de pessoas que não fazem a menor diferença na nossa vida ou se usaremos esse tempo para fazermos algo que nos faça bem.

Existencialismo

A situação de quarentena nos põe questões existenciais, como atentou Richard Tarnas em sua participação no Prendiamola com Filosofia do dia 04/04/2020, e é uma oportunidade para fazermos uma investigação filosófica sobre nossas vidas. Em sua fala Tarnas observou que a quarentena nos faz refletir sobre a vida que conduzíamos antes e como agiremos depois. Alain de Botton, em sua fala na live, entende ainda que a quarentena mudará nosso modo de ver o tempo, pois ao passarmos o dia inteiro em casa dificilmente continuaremos pensando que a vida é curta, mas perceberíamos que somos nós que a encurtamos ao levarmos uma vida corrida e, após a quarentena, ele espera que reduzamos a velocidade para aproveitar melhor a vida. Assim, a quarentena é uma oportunidade para nos colocarmos questões importantes a respeito de nossas próprias vidas, como por exemplo: eu tenho vivido a minha vida ou tentado viver a vida de outrem? Eu tenho aproveitado o meu tempo disponível para fazer coisas que me agradam e me fazem bem ou passo o meu tempo me lamentando e destruindo minha saúde? Eu tenho levado uma vida prazerosa ou estou sempre sob estresse e angústia? Ao que e a quem eu tenho dado maior prioridade no meu tempo? Quem são as pessoas que eu quero perto de mim e por que? A vida que eu tinha antes da quarentena é a mesma que eu quero ter depois?

Outra reflexão que surge a partir da questão do uso do tempo é a da suposta utilidade ou inutilidade das coisas. Há algum tempo vem-se dizendo no Brasil que a Filosofia e as artes não servem para nada e deveriam ser negligenciadas; contudo, se prestarmos atenção, é justamente a esses saberes que estamos recorrendo nesse período. Não me interessa aqui a visão exposta por Aristóteles na Metafísica segundo a qual as coisas inúteis são superiores porque são um fim em si mesmo e por isso a Filosofia é superior a todos os saberes, afinal a Filosofia não seria serva para servir a algo, mas soberana. Me interessa observar que, em meio ao discurso de “valorizar o que é útil”, nem todos ainda perceberam que 98% ou 99% do que fazemos em nossas vidas é “inútil”. Observemos o critério para as medidas de isolamento: o que determina quais coisas são essenciais é a subsistência. As únicas coisas “necessárias” à vida são água e alimentos, TODO o resto é “inútil” e nós passamos quase todo o nosso tempo fazendo “coisas inúteis”; mas nós as fazemos porque nos dão prazer e alegram a vida, por isto que muitas pessoas estão desesperadas ou entediadas: porque não podem fazer essas “coisas inúteis” que lhes dão prazer e uma vida conduzida apenas com base no que é “necessário” é uma vida que ninguém quer. Essa situação nos mostra que precisamos de certas coisas para vivermos que não são necessárias à sobrevivência: e, como desafiou o escritor Stephen King, se você acha que artistas são inúteis, tente passar a quarentena sem filmes, séries, músicas, poemas, livros e pinturas – e aqui eu incluiria também videogames e qualquer tipo de entretenimento.

O isolamento e o distanciamento social também têm nos mostrado uma coisa que a Filosofia e a Psicologia já sabiam: nós precisamos do contato com os outros. É conhecida a afirmação de Aristóteles de que nós humanos somos animais políticos porque dependemos dos outros para vivermos; mas, como destacou Lucrezia Ercoli na live, antes de Aristóteles a filósofa Diotima de Mantineia já argumentava que para vivermos e até para amarmos nós precisamos do contato carnal com os outros, porque tudo partiria do corpo. Isso pode ser observado num belíssimo vídeo do canal Casa Surace, no qual perguntam aos italianos qual será a primeira coisa que farão quando saírem da quarentena e a quase totalidade das respostas seria abraçar alguém que amam, ou mesmo um desconhecido, porque sentiam uma necessidade enorme de dar um abraço e, dessa forma, terem contato (corporal) com os outros. E, atualmente, todos os estudos sérios sobre felicidade mostram que relações de qualidade são fundamentais, ou seja, que precisamos de outras pessoas para sermos felizes.

A pandemia também foi responsável por mudanças no mundo do trabalho e da educação. Na live Maura Guancitano, ao discutir o pensamento de Hannah Arendt, questiona em que medida as noções de trabalho desenvolvidas por Marx e Adam Smith teriam contribuído para o modo de vida que levamos e, consequentemente, em que medida eles seriam responsáveis por estarmos vivendo isolados. Ademais, viu-se uma rápida transferência do trabalho para o mundo virtual, mas alguns problemas surgem: em que medida esse processo acentuará as desigualdades socioeconômicas? Quais as consequências para a saúde? Como ficaria a socialização das pessoas se retirarmos o ambiente comum de trabalho? Poderia aumentar o número de empregadores que não respeitam os horários de trabalho e obrigam os funcionários a trabalharem fora do expediente sem pagarem horas extras?

Quanto à educação, em sua fala na live Yuval Noah Harari menciona que as universidades, que vinham levando 20 anos para transferirem suas atividades para a internet, em uma semana se viram obrigadas a transferirem tudo para a internet. O mesmo ocorreu nas escolas, mas alguns problemas do contexto brasileiro surgem: considerando que apenas 67,5% da população utiliza internet, as que não possuem ficariam excluídas do processo educativo? Como seria possível adotar o EaD se as operadoras brasileiras conseguirem limitar a franquia de dados? Para as aulas online precisaríamos abandonar as metodologias ativas que dão mais autonomia aos alunos e tornam as aulas mais dinâmicas para voltarmos ao tipo de aula em que só o professor fala? Quanto à estrutura das aulas, o professor gravaria uma aula que ficaria disponível para os alunos assistirem quando quisessem ou seria feita uma transmissão no horário da aula? Se fosse adotado o primeiro caso, como o professor poderia acompanhar o desenvolvimento da turma e tirar dúvidas dos alunos? Se fosse adotado o segundo caso, as famílias que possuem mais de um filho, mas apenas um computador, teriam que escolher qual filho assistiria à aula? Como assegurar que os alunos de fato assistam às aulas, especialmente para as famílias que não podem deixar um adulto em casa para fiscalizar as crianças/adolescentes? E os problemas de visão causados por se passar tanto tempo na frente de uma tela? Onde as crianças desenvolveriam suas habilidades sociais?

Outro problema que a Filosofia nos convida a refletir é sobre como será o mundo em termos políticos pós-pandemia. Alguns dizem que essa situação é uma oportunidade, afinal depois da Peste Negra veio o Renascimento; contudo, o que não está sendo dito é que a Peste Negra foi responsável pela redução da liberdade política e econômica. Tomemos como exemplo o caso de Florença, o berço do Renascimento: antes da Peste Negra em 1348 a cidade enfrentou três crises alimentares, a primeira de 1328 a 1330, a segunda de 1339 a 1341 e a terceira de 1346 a 1347. Antes o governo quase não interferia no comércio e se restringia a reunir alimentos para os períodos de carestia; mas como consequência de todas essas crises o governo florentino se viu obrigado a aumentar sua política de manutenção de alimentos, o que resultou em maiores interferências no comércio. Estas interferências também se fizeram necessárias por causa da falência de inúmeros comerciantes, causada pela drástica redução populacional. Ademais, durante a segunda metade do século XIV o governo foi ocupado pela oligarquia que aproveitou a ocasião para adotar políticas que beneficiassem suas atividades e restringissem a participação do povo nos cargos públicos3. Em suma, a consequência direta da Peste Negra em Florença foi a concentração do poder pela oligarquia e o enfraquecimento da participação popular nas decisões da república, o que resultou na perda das liberdades política e econômica.

As mudanças políticas são outras preocupações dos filósofos porque medidas que estão sendo tomadas agora para conter o novo coronavírus podem beneficiar regimes autoritários. Na Coreia do Sul, por exemplo, o governo criou um aplicativo que tem acesso à localização da pessoa e permite acompanhar os movimentos dela para saber se ela está ou não onde deveria estar; na China, além desses dados, monitora-se também os fluxos aéreo e rodoviário dos cidadãos. Na Hungria, a fim de combater a pandemia, o Parlamento permitiu ao primeiro-ministro governar por decreto por tempo indeterminado, sem precisar do aval do Legislativo, podendo suspender leis e sessões do Parlamento e cabendo ao primeiro-ministro o poder de decidir quando acabará o período de emergência;  No Brasil o governo vai ter acesso aos dados das operadoras de celulares para identificar onde há aglomerações de pessoas. Na Rússia, apesar de poucos casos confirmados, Lia Quartapelle conta em sua participação na live que o governo determinou quarentena e as pessoas só poderiam sair de casa se possuírem um código QR em seu celular que as autorize a sair. Mesmo que algumas dessas medidas sejam importantes para se tentar conter o novo coronavírus, Yuval Noah Harari, em sua participação na live, destaca que esse pode ser o começo de um aumento do totalitarismo no mundo, no qual os governos controlariam a movimentação dos cidadãos e teriam acesso a inúmeros dados deles, inclusive a dados de seus organismos (do controle da temperatura a outros dados que poderiam ser obtidos por aplicativos que monitoram a saúde dos usuários). Teme-se que todo este controle seja prorrogado por regimes já autoritários e usado para seguirem rumo ao totalitarismo.

Para concluir, em tempos de isolamento a Filosofia é, como observa Moreno Montanari na live, uma forma de se buscar uma via para lidar com a quarentena e uma nova forma de se pôr ao mundo, permitindo que, como disse Richard Tarnas na live, reflitamos sobre nossas vidas, como as temos conduzido e como as conduziremos quando sairmos da quarentena. A Filosofia, portanto, assume diversos papéis neste momento, atuando como um instrumento para que possamos enfrentar melhor a pandemia; ou para que possamos fazer bom uso do tempo disponível e façamos uma investigação cujo objeto a ser investigado é o nosso próprio eu; ou que nos permita pensarmos de que modo a pandemia afetará o mundo, avaliando as mudanças, os benefícios e problemas e como poderíamos nos preparar para tal; ou ainda para avaliarmos como os governos agiram no combate ao vírus, onde acertaram e erraram e quais os desafios políticos que toda essa situação nos lança. Essas são apenas algumas possibilidades, e de uma esfera particular a uma coletiva, a Filosofia torna-se importante para pensarmos como enfrentaremos, no presente e no futuro, as consequências da pandemia.

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Igor Ferreira Fontes é mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe e graduado em Filosofia – Licenciatura pela mesma universidade. Artigo reproduzido do site Diplomatique. 

Referências 
 
1 Cf. MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

2 Cf. TOGNI, P. Stoicismo. In: ECO, U.; FEDRIGA, R. (a cura di). Storia della Filosofia vol.1: Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza & Figli; Milano: EM Publishers, 2014, p.1107-1157. Edizione digitale.

3 Cf. FRANCESCHI, F. Intervento del potere centrale e ruolo delle arti nel governo dell’economia fiorentina del trecento e del primo quattrocento. Linee generali. Archivio Storico Italiano, Firenze, v.151, n.558, Disp.IV (ottobre-dicembre), p.863-909, 1993; e FIUMI, E. Fioritura e decadenza dell’economia fiorentina. Archivio Storico Italiano, Firenze, v.117, n.4 (424), p.427-502, 1959.


 

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